Era dia de dérbi em Belo Horizonte, mas isso não mudaria nada. João Leite acreditava que tinha uma missão que lhe fora confiada por Jesus Cristo: espalhar a palavra de Deus entre outros jogadores de futebol.
Então, naquela tarde de dezembro de 1982, assim como havia feito em todas as partidas nos últimos três anos, o goleiro do Atlético Mineiro se aproximou aleatoriamente de um adversário antes do grande jogo começar.
“Jesus te ama e eu tenho um presente para você”, disse ele ao goleiro do Cruzeiro, Carlos Gomes, enquanto o presenteava com uma cópia da Bíblia.
Na época, Gomes achou tudo um pouco estranho dadas as circunstâncias. Ele até admitiu sentir um pouco de raiva ao receber o livro.
Mas esse sentimento inicial mudou mais tarde e ele realmente se juntou ao movimento religioso de Leite – Atletas de Cristo. Ele estava longe de ser o único convertido.
Uma associação de esportistas cristãos evangélicos, Atletas de Cristo contava com algumas das pessoas mais influentes do futebol brasileiro entre seus membros.
Em sua primeira reunião, eles eram em número de quatro. Isso cresceria para cerca de 7.000 em 60 países, incluindo jogadores de futebol de alto nível, como o vencedor da Bola de Ouro de 2007, Kaká, e o ex-zagueiro do Bayern de Munique, Lucio.
“Tudo começou com Alex Dias Ribeiro, um piloto de Fórmula 1 que competiu com slogans ‘Jesus Salva’ em seus carros”, disse Leite, que jogou cinco vezes pelo Brasil, à BBC Sport.
“Decidi fazer o mesmo e joguei com ‘Cristo Salva’ na minha camisa, mas depois a Associação Brasileira de Futebol proibiu e ameaçou meu time Atlético com a dedução de pontos.
“Foi então que comecei a dar Bíblias para outros jogadores. Mas eram tempos difíceis – havia tanto preconceito contra os jogadores evangélicos. Nem mesmo a seleção parecia um ambiente confortável. Não foi fácil para mim.”
Em 1980, em torno de Leite partiu em sua “missão”, 88,9% da população brasileira identificada como católica. Evangelicalismo – um movimento dentro do cristianismo protestante – respondeu por 6,6%.
Desde então, o equilíbrio mudou consideravelmente. Pesquisa do Datafolha, instituto de pesquisas, colocou esses respectivos números em 50% e 31% em 2021.
O Brasil continua sendo a maior nação católica do mundo, mas em 2032 prevê-se que as igrejas evangélicas atrairão mais fiéis no país.
Quando Leite se aposentou do futebol em 1992, o movimento Atletas de Cristo estava se fortalecendo.
A associação tinha seu próprio programa de TV na Argentina, apresentado pelo ex-meia brasileiro Paulo Silas e transmitido três vezes por semana. Eles até tentaram, em vão, converter Diego Maradona.
Uma de suas figuras mais proeminentes, o lateral-direito brasileiro Jorginho, também distribuiu Bíblias aos adversários ao capitanear o Bayer Leverkusen, que trocou pelo Bayern de Munique em 1992.
Dois anos depois, durante a Copa do Mundo de 1994, ele foi um dos seis jogadores evangélicos da seleção brasileira que derrotou a Itália nos pênaltis para vencer a final. Cinco deles formaram um círculo no centro do campo e agradeceram a Deus depois que o pênalti de Roberto Baggio voou por cima da barra. O sexto membro estava comemorando em sua caixa de seis jardas.
“Quando Baggio pegou a bola, não tive dúvidas de que venceríamos”, disse o goleiro Taffarel depois. “Quem acredita em Deus nunca perderá para alguém que acredita em Buda.”
A imagem de Taffarel, agora treinador de goleiros do Liverpool, comemorando com os braços erguidos ao céu diante de Baggio abatido, praticante do Budismo Nitiren, serviu de capa do livro ‘Quem Venceu o Tetra?’ (Quem ganhou o quarto título?).
Ele incluiu depoimentos dos jogadores dando crédito a Deus pela vitória, que foi criticado pelo lendário técnico Mario Zagallo. Marcou um ponto de virada.
O movimento Atletas de Cristo não goza mais da popularidade que já teve. Mas o evangelicalismo continua a se espalhar rapidamente no Brasil e sua influência na seleção só aumentou desde 1994.
Enquanto Leite encontrou alguma hostilidade em relação à sua fé dentro do cenário nacional na década de 1980, hoje em dia os pastores evangélicos têm acesso especial aos acampamentos da equipe. Eles contam com doações de jogadores para viajar e realizar cultos em salas separadas designadas pela Federação Brasileira de Futebol. Em alguns casos, os pastores chegaram a fazer parte da comitiva dos jogadores.
Durante a Copa do Mundo de 2002 – que o Brasil também venceu – o zagueiro Lucio, Kaká e o ex-zagueiro do Barcelona Edmilson se uniam em oração.
“Você podia fazer o que quisesse nos seus dias de folga”, disse Lucio à revista Revista Viagem em 2010. “Para mim, foram momentos de fé.
“Tentamos discutir ideias positivas sobre como lidar com a enorme pressão que tivemos que enfrentar nesses jogos”.
Depois de vencer a Copa das Confederações de 2009 na África do Sul, Lucio e outros jogadores vestiram camisas brancas com slogans devotos como ‘Eu amo Deus’ e ‘Eu pertenço a Jesus’.
Os oficiais disseram para removê-los, mas Lucio resistiu e colocou o seu em torno de seu short enquanto levantava o troféu. A Federação Dinamarquesa reclamou publicamente da imagem e uma carta de advertência foi enviada ao Brasil pela Fifa, cujas regras proíbem “declarações políticas, religiosas ou pessoais”.
No ano seguinte, vozes de dentro do Brasil começaram a questionar se o evangelicalismo tinha muita influência no cenário nacional.
Em meio à crescente pressão para que Ronaldinho, então jogador do Milan, seja convocado para a Copa do Mundo de 2010, a revista ESPN escreveu em sua capa que ele não iria porque “jogar na Seleção, futebol não basta. ser membro da ‘igrejinha’ (literalmente ‘igrejinha’, significando também ‘panelinha’ ou ‘loja fechada’)”.
Em última análise, Ronaldinho não foi incluído no elenco e depois que o Brasil foi eliminado pela Holanda nas quartas de final, houve alegações de que um analista de desempenho de longa data foi substituído por alguém que tinha “mais experiência evangélica”.
Alguns anos depois, em 2015, o chefe de segurança foi demitido pela Federação Brasileira de Futebol por permitir que um culto evangélico acontecesse dentro do hotel da equipe sem o conhecimento do técnico Dunga.
“Hoje o céu estava comemorando durante nosso encontro porque três vidas aceitaram Jesus Cristo e tomaram a decisão certa”, postou o pastor nas redes sociais. A dupla do Liverpool Alisson Becker e Fabinho, o ex-zagueiro do Chelsea e Arsenal David Luiz e Lucas Moura, do Tottenham, estavam entre os presentes.
Não é só no futebol que os evangélicos cresceram em número e poder no Brasil. É também na política.
O presidente de extrema direita Jair Bolsonaro venceu as eleições de 2018 com o apoio de quase 70% da comunidade evangélica, incluindo estrelas do futebol como Neymar e Rivaldo.
Bolsonaro, que nasceu em uma família católica e depois foi rebatizado no rio Jordão por um pastor evangélico, prometeu nomear um juiz do Supremo Tribunal que fosse “terrivelmente evangélico”. E ele tem entregado.
Quando em dezembro de 2021 André Mendonça, advogado e pastor evangélico, foi confirmado para o papel, um vídeo da primeira-dama Michele Bolsonaro gritando ‘Glória a Deus’ e falando em línguas se tornou viral.
Enquanto atuava como procurador-geral, Mendonça havia usado versículos da Bíblia para defender a reabertura das igrejas durante a pandemia de Covid-19. Ele disse que sua nomeação foi “um pequeno passo para o homem, um passo gigante para os evangélicos”.
A expansão evangélica na política remonta a 1986, quando começou a se espalhar um boato de que o Brasil estava considerando tornar o catolicismo sua única religião oficial. Naquele ano, foram eleitos 32 deputados federais evangélicos. Agora existem 105 deputados, além de 15 senadores.
Não é incomum encontrar alguns deles realizando serviços na Câmara dos Deputados. Quando a ex-líder Dilma Rousseff sofreu impeachment em 2016, 58 parlamentares dedicaram seu voto a Deus.
Os críticos vinculam o evangelicalismo na política ao fortalecimento da agenda conservadora e ao aumento da intolerância que não deixa espaço para que as de outras crenças religiosas, especialmente as de origem africana, se expressem.
Embora o índice de aprovação nacional de Bolsonaro tenha caído recentemente para 22%, com as próximas eleições presidenciais marcadas para 2 de outubro, muitos jogadores de futebol evangélicos como Neymar permanecem leais e são vistos como tendo um papel fundamental no aumento de seu apelo.
O ex-internacional brasileiro Walter Casagrande, agora um comentarista, criticou o atacante do Paris St-Germain, alegando que ele se tornou o “vassalo” de Bolsonaro.
Então, quando o atacante do Bayer Leverkusen, Paulinho, marcou para o Brasil na vitória por 4 a 2 sobre a Alemanha nos Jogos Olímpicos do ano passado, foi interessante notar sua comemoração.
Ao se posicionar contra a perseguição religiosa, o jovem de 21 anos fez o gesto de arqueiro em homenagem a Oxossi, seu orixá (divindade espiritual) da religião do candomblé.
Uma mistura de crenças tradicionais Yoruba, Fon e Bantu originárias de diferentes regiões da África, o Candomblé é praticado há muito tempo no Brasil, no passado muitas vezes em segredo. Mesmo agora, ainda sofre ataques ocasionais de evangélicos radicais, que consideram a religião satânica.
Mas Paulinho parecia determinado a lembrar aos outros em casa que ainda há espaço para todas as religiões no Brasil – e na seleção.