Cerca de 1 milhão de pessoas no Brasil vivem perto de uma barragem perigosa, segundo uma análise da DW. A situação desperta o alarme sobre as possíveis consequências de mais um acidente no país, que viu três desastres de barragens em grande escala desde 2009.
A descoberta inclui todos aqueles que vivem em áreas povoadas a não mais de um quilômetro de uma das 1.220 barragens que combinam as classificações de “alto risco” e “alto potencial de dano” no Sistema Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens (SNISB).
Uma classificação de alto risco significa que uma barragem apresenta danos estruturais, falhas de projeto ou não é mantida adequadamente, colocando-a em maior risco de contratempos organizacionais e incidentes de segurança que podem levar a um rompimento. Uma classificação de alto potencial de dano, por sua vez, significa que tal falha teria grandes custos ambientais, humanos ou econômicos.
O problema está sendo exacerbado por uma governança falha. Apesar das exigências legais, muitas barragens não possuem planos de segurança e emergência que descrevam o que deve ser feito em caso de desastre.
De acordo com dados do SNISB coletados em fevereiro de 2022, 39 das barragens classificadas como de alto risco e alto potencial de dano contêm resíduos de mineração, que são considerados particularmente instáveis. Os recentes desastres nas cidades de Mariana em 2015 e Brumadinho em 2019 envolveram tais barragens.
A maioria das estruturas de risco, no entanto, são reservatórios de água e barragens de irrigação. Eles estão localizados principalmente no Nordeste, uma região relativamente pobre que historicamente sofre com a escassez de água.
Muitos dos reservatórios da região foram construídos para compensar a seca. Sem manutenção adequada, eles representam um perigo para cerca de 600.000 pessoas somente nessa região.
Barragens – um sinal de negligência de infraestrutura
Localizada em região semiárida, Riacho da Cruz é uma cidade com cerca de 3.000 habitantes. A chuva é escassa e os rios muitas vezes correm baixo lá.
Nesta cidade, quase todos vivem a jusante de uma barragem perigosa. Construída em 1957 para ajudar a manter a água fluindo durante as secas frequentes, a barragem é um bom exemplo do tipo de estrutura encontrada espalhada pela maior parte do Nordeste brasileiro.
“Nas décadas de 1960 e 1970, o governo federal tentou promover a segurança hídrica nesta região”, diz Mariano Andrade da Silva, pesquisador de saúde e desastres da Fiocruz, uma importante instituição acadêmica brasileira. A construção de reservatórios de água em áreas de seca frequente fazia parte desses esforços.
“Sem a devida manutenção, essas estruturas se tornaram um risco para a população”, acrescenta Silva.
Além da infra-estrutura estatal negligenciada, Silva descreve as barragens “órfãs”. A pessoa ou organização responsável por essas barragens é desconhecida ou não está mais mantendo ativamente as estruturas.
Como resultado, 10 pessoas para cada 1.000 no Nordeste vivem perto de uma barragem perigosa. Esse é o valor mais alto em todas as regiões do Brasil. No Sudeste, que abriga estados mais ricos como São Paulo e Rio de Janeiro, cerca de três em cada 1.000 vivem em situação semelhante.
A falta de recursos agrava a situação
A falta de recursos nas áreas onde estão localizadas essas barragens é um agravante. De acordo com uma pesquisa recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 20% das cidades nordestinas com pelo menos uma barragem perigosa nas proximidades não têm serviços locais de defesa civil funcionando.
Os serviços de defesa civil devem implementar programas de mitigação de riscos, incluindo a identificação de áreas vulneráveis e o estabelecimento de planos de contingência. Se ocorrer um desastre, eles também são responsáveis por coordenar os esforços de resgate.
“Um desastre é um evento improvável. Mas, se ocorrer, pode levar não só à morte, mas à destruição dessas comunidades como um todo”, diz Silva, acrescentando que os reservatórios são fontes de água vitais tanto para o consumo humano quanto para a agricultura . . Uma falha na barragem, explica ele, também põe em risco a segurança alimentar e hídrica local.
Um olhar para trás na história recente mostra as consequências de tais eventos. Em 2009, uma barragem anti-seca rompeu em Cocal, cidade com 25 mil habitantes no estado do Piauí. O evento matou nove pessoas, desalojou centenas e prejudicou a economia agrícola local.
Em janeiro de 2020, um ano após o desastre, homem presta homenagem às vítimas do acidente da barragem de Brumadinho
Desde então, grandes tragédias de barragens têm ocorrido com frequência no Brasil. Os desastres de Mariana em 2015 e Brumadinho em 2019 foram dois dos maiores acidentes de barragens do país e ainda estão crus na consciência nacional. Juntos, eles foram responsáveis por quase 300 mortes.
As estruturas que falharam nessas cidades mineiras, no entanto, foram muito diferentes das do Nordeste. Eram barragens de rejeitos usadas para armazenar resíduos de mineração.
Metade dos desastres aconteceu em um estado de mineração
Embora as barragens de rejeitos sejam significativamente menores, elas são responsáveis por um número desproporcional de tragédias.
Dos 18 acidentes de grandes barragens registrados no Brasil entre 1986 e 2019, nove foram relacionados a operações de mineração. Oito deles – incluindo as catástrofes em Brumadinho e Mariana – ocorreram no estado de Minas Gerais, que é o principal centro de mineração do Brasil desde 1700.
“Barragens de rejeitos não retêm simplesmente água, como as outras. É muito diferente. O rejeito contém elementos como areia, argila, amido, ferro… É muito mais perigoso, mais instável”, diz Evandro Moraes da Gama, .professor do departamento de engenharia de minas da Universidade do Estado de Minas Gerais (UFMG). “Não há técnica, no Brasil ou no mundo, que consiga fazer isso com 100% de segurança.”
Rafaela Baldi, engenheira geotécnica com Ph.D. em segurança de barragens da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), diz que a maioria das falhas pode ser atribuída a más práticas de gestão.
Segundo Baldi, as mineradoras são responsáveis pela falta de cuidados adequados, pois buscam aumentar os níveis de extração e reduzir custos. A culpa também é das instituições destinadas a monitorar as atividades de mineração, acrescenta.
Brumadinho, a falha de barragem mais letal do Brasil, serve como exemplo.
Executivos da mineradora Vale e auditores da empresa alemã TÜV Süd, que atestaram a estabilidade do rompimento da barragem, respondem às acusações de ignorar problemas estruturais.
“Infelizmente, isso não é exclusividade desse desastre. Essa é uma prática comum no Brasil. As mineradoras pressionam os consultores, e eles acabam escrevendo o que é mais conveniente no momento”, diz Baldí.
Fechar os olhos para o perigo
Quando as barragens de Brumadinho e Mariana romperam, não foram classificadas publicamente como estruturas de alto risco. Isso ilustra outro aspecto do problema das barragens no Brasil – a falta de informação. O país desconhece quantas barragens existem em seu território e seu estado de conservação.
Desde 2010, as informações sobre todas as barragens do país passam a ser centralizadas no Sistema Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens, mantido pela Agência Nacional de Águas (ANA).
No entanto, os dados estão longe de serem completos, conforme destacado nos próprios relatórios anuais da ANA. Cerca de 22.000 barragens estão atualmente registradas no banco de dados. Mas a agência estima que existam cerca de 170 mil reservatórios artificiais de água no país.
Para 57% das barragens do sistema, não há informações que determinem se estão sujeitas à legislação que define padrões de segurança para estruturas acima de um determinado tamanho, nível de risco ou classificação de dano potencial.
A maioria das 6.000 barragens registradas como sujeitas aos protocolos nacionais de segurança não estão em conformidade. Cerca de 73% não possuem os planos de segurança ou emergência necessários. Em outras palavras, eles não fornecem orientações básicas sobre o que fazer se ocorrer um desastre.
Segundo Fernanda Laus, coordenadora de segurança de barragens da agência de águas ANA, são esperadas lacunas de informação na implementação de uma nova política pública. O banco de dados de monitoramento de segurança foi criado há 12 anos.
Ela acrescenta que as lacunas podem ser parcialmente atribuídas à natureza de retalhos do sistema regulatório. Em última análise, os dados são coletados por 44 organizações governamentais com diferentes níveis de financiamento e funcionários.
“Os recursos são limitados. É natural começar com barragens maiores e deixar as menores para depois”, diz Laus, acrescentando que alguns reguladores estão se movendo rapidamente para coletar dados perdidos. “Mas isso não é uma realidade para todas as agências. Algumas delas simplesmente não têm capacidade para fazer isso por enquanto.”
Editado por: Gianna Grün e Jennifer Collins